segunda-feira, 27 de janeiro de 2014


DESABA(FO)

Acontece que não consigo me encaixar em nenhum cargo, tribo, religião.
Tudo parece tão distante e fora de mim. 
As terapias deixaram de conversar comigo, ou eu com elas. 
O fato é que o diálogo não existe mais. 

As madrugadas etílicas atravessadas com conversas bobas, elas não têm mais graça.

O entusiasmo de uma nova atividade em segundos se converte em tédio. 

Os rituais espetacularizados chegam até mim como uma infinidade de páginas intermináveis de autoajuda nada convincentes, servindo apenas como peso na minha bagagem.
...
E nesse terreno árido, onde reina o tédio profundo, cinzento e gélido, existe um fio dourado que se recusa a morrer dentro de mim. Por trás de nebulosos pensamentos, entre sentimentos corroídos, abre-se uma fresta e ainda consigo enxergar sua fonte. É ele, que teima em resistir. É ele, brotado e fincado no meu solo, no meu ser.
Me retorço, me reviro e consigo libertar amarras para me aproximar dele.
Chego bem perto até arrancar uma gota. Apenas uma gota, extraída com afinco.
Tão pouco. Mas não importa, deve ser o suficiente.
Afinal, é pura essência.
É AMOR.

Sorvo a gota com ímpeto e prossigo minha jornada.
O corpo continua sentindo os desgastes, mas a neblina se rarefez e agora posso enxergar o caminho.

HIPOCONDRISMO CONTEMPORÂNEO

Cólicas de irritação.
Enxaqueca de preocupações.
Pensamentos inflamados.
Cansaço crônico.

A humanidade está doente e o mundo se encontra em estado de tensão generalizado.
Síndromes entram e saem de moda, enquanto o corpo tenta segurar a onda de uma cabeça que não para. E neste curto-circuito, uns colapsam e outros abrem conta na farmácia. 
Alopáticos, fitoterápicos, homeopáticos, são todos tão simpáticos! De bucólicos florais a powerantibióticos, tem drinks para todos os gostos na dose certa de insanidade que se procura.
É só escolher os seus favoritos, misturar bem e preparar um belo coquetel.

Tim-tim, bem-vindo à era dos anestesiados.

domingo, 12 de maio de 2013

A ARTE DE FORMATAR A ARTE


Licitações, projetos, programas, incentivos, premiações. A arte está mais institucionalizada do que nunca.
Os mecanismos de financiamento têm regras, planilhas e armadilhas em editais cheios de cálculos, estratégias, contrapartidas e justificativas. São verdadeiros cases de MBA com seu vocabulário business ou teses de dourado com a sua formatação rigorosamente metodológica.

Mas a pergunta que me interessa é: como fica a própria arte no meio de tudo isso?

O que as minhas lentes enxergam é uma coleção de grupos e artistas - talentosos e Às vezes nem tanto – se contorcendo para se encaixarem em modelos pré-fabricados e conseguirem o seu tão desejado lugarzinho nas prateleiras do mercado da arte. Observando um pouco mais além, vejo outros grupos e artistas legítimos sem “aderência” ao mercado ficarem à deriva. É verdade que no conjunto da periferia dos financiamentos também existem trabalhos totalmente medíocres, mas não é deles que estou falando.

Eu estou falando é de compromisso com a arte. Linguagem, conexões, pesquisa e tudo o que o processo criativo envolve são temas deixados em segundo plano. O que mais importa é o grau de viabilização.
O peso da logomarca, a visibilidade do investidor, os retornos institucionais. Pontos como esses estão ganhando preocupação cada vez maior, ao passo que diminuem a preocupação em responder questões como: para quem estamos produzindo arte? O projeto já está pago mesmo, para que formar público? 
E os critérios para esta caça aos níqueis são no mínimo duros, objetivos, matemáticos. Isso para não dizer políticos.
Adjetivos esses que nada combinam com o caráter flexível, subjetivo, original e – por que não?  – apaixonado da arte em sua essência.

Sim, é preciso ter paixão para fazer arte. O resto é embalagem.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

QUESTÃO DE DESPERDÍCIO

Em tempos de tomzés declamando comercial de refrigerante, adnets congelados em canal de TV aberta e muitas outras combinações destoantes, meu íntimo estava prestes a dizer “Até tu, Brutus” quando foi atropelado pela máxima “Eu já sabia”. No fundo, a gente até sabe que as coisas vão acontecer, mas fica torcendo pra demorar um pouquinho mais.

Mas eu não tou falando de coisas chatas como ética, moralismo não. Nada de apontar dedos críticos para as escolhas das criaturas, a discussão é muito mais simples: uma questão de desperdício.  Nos dias de hoje a gente fala tanto em evitar o desperdício de recursos materiais, mas acho que a onda verde também está fora dos latões de lixo e deveria cobrir questões como essas, pensar numa espécie de sustentabilidade artística.

É como escalar o Neimar para uma pelada com os caras do condomínio ou chamar o Michael Jordan para o basquetinho com o pessoal da firma (Olha o rebote!). É como ressuscitar o Pavarotti para narrar rodeio (Irraaa!), decorar banheiro de rodoviária com Monets, ir à padaria de Chanel (Oui), chamar o Olivier para fazer um miojo (Merci). Ou então trazer o Barishnikov para o festival de fim de ano da escolinha de dança apresentado por Fernanda Montenegro com acompanhamento da Filarmônica de Viena. É aspargos em sopa de pedra, diamante em durepox, manja?

O jeito é pegar o controle remoto e desligar antes que os porcos comecem a desfilar glamourosamente com seus novos colares de pérolas.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O BICHO QUE MORA AQUI DENTRO

Quando percebi, ele já tinha chegado. 
Feroz, brutal, pronto para o ataque.
Não sei bem de onde veio, mas estava ali na minha frente, faminto. 
Ao me deparar com seu porte, nem tentei resistir, fiz-me presa vencida e deixei-o se apossar de meu corpo.
(...)
Agora eu era o próprio bicho e queria destruir o que encontrava pela frente. 
Minha agressividade crescia, cravando palavras afiadas nas criaturas que cruzavam meu caminho. Feridas, golpes e arranhões foram distribuídos. 
Não houve vítimas letais, mas eu fui gravemente atingida.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

HAY QUE ENDURECER PERO SEM CONGELAR

O mundo nos exige resistência. Ele não pede não, exige.

Já na primeira tarefa do dia, resistimos. Ao sono. E depois, seguimos por um cotidiano minado de testes de resistência. Resistir aos impulsos, insistir no relatório. Não cair em tentação, não deixar a peteca cair. Segurar a onda do namorado, segurar marido, segurar as despesas, segurar o choro, segurar as expectativas, estar seguro.


Desde cedo, passamos por um treinamento espartano para o endurecimento. Na escola, na família, com a turma de amigos, com o pessoal do trabalho. A ordem é endureça-se. Afinal, você não quer parecer uma criança mimada e muito menos um maricas. Vamos, fique firme, não esmoreça, desse jeito vão achar que você é fraco, ou pior ainda: um fracassado. Não, não, tudo menos isso!


Ser tachado de fracassado em nossa atual sociedade é pior que qualquer coisa. Um homem pode ser o cidadão mais infeliz do mundo, mas não pode receber este temido adjetivo (temido, não, pois só tem medo quem é fracote). E por quê? Porque isto afirma que ele não se adaptou, não obteve o tal sucesso, não venceu na vida o coitado. Pois é aí que mora a raiz da questão, no conceito de vencer. Ora, para existir um vencedor, é preciso que haja um perdedor, é preciso uma comparação, uma competição. O que foi, tá com medinho de partir pra briga? Olha lá, não vá amarelar, hein! Desse jeito vão ficar com pena de você, já pensou que vergonha!


É a lei da selva. A floresta agora é cinza, mas a competição continua reinando. Se na época das cavernas vencia o fisicamente mais forte, agora vence o emocionalmente mais endurecido.


Sabe, andei pensando, o que adianta vencer (entre aspas) se muitas vezes isso não significa ser feliz? Isso aqui não é livro de autoajuda (coisa para os fracos), é pura constatação. Não seria muito mais coerente buscarmos vencermos a nós mesmos, nossas batalhas internas e externas? E para esta história ficar mais atrativa, podemos nos dar um prêmio de recompensa quando ganhamos. O prêmio pode ser material, como o vestido da vitrine que virou seu pescoço quando você passava na calçada ou aquele novo jogo de videogame cheio de aventuras fantásticas (nessa frase, pode-se substituir as palavras vestido e jogo de videogame por artigos como carros ultrapotentes, joias ofuscantes, bugigangas high techs ou qualquer outro aparato que o dinheiro possa comprar). Mas logo você cansa do vestido e o novo jogo ficou velho. De nada adiantou.


Foi aí que tive outra ideia. O melhor estímulo que podemos ter para ultrapassar nossos obstáculos é um prêmio invisível: o direito de amolecer. Este sim é um galardão valioso, concedido a poucos. Para conquistá-lo é preciso passar por provas muito mais complexas como assumir fraquezas, emocionar-se em despedidas, aceitar que dias tristes existem, chorar perdas, ficar de luto até que a vida renasça em suas mais belas formas. E por falar em beleza, somente os raros homens e mulheres que se permitem passar pelo processo do amolecimento têm o privilégio de enxergar a real beleza da vida. Esses deixam-se derreter com uma música tocante, um abraço forte, palavras que falam ao coração e gestos que nos tiram de um cotidiano brutalmente competitivo e de padrões congelados em uma sequencia frenética e automática.


Derreter-se não quer dizer fragilizar-se. Depois de aquecer a alma com o calor das emoções, solidificam-se sensações extremamente consistentes. Cria-se o que se chama de resiliência, um superpoder que somente os corajosos podem conquistar. Ser resiliente é aceitar os seus medos e dificuldades e nem por isso correr deles. É ser firme, sem precisar ser duro. É ter a ousadia de errar e a capacidade de se recuperar. É ser forte, sem precisar substituir uma pedra de gelo por um coração pulsante, cheio de emoções para sentir e amor para doar. Afinal, o amor não sai de moda, não envelhece. Amor é bom, todo mundo gosta, mas só existe para os corajosos.


Bom derretimento!



Classificado em 4º Lugar no 3º Concurso de Crônicas da ALARP